Duas datas marcantes este ano envolvem o nome do grande poeta Carlos Drumond de Andrade, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX: se fosse vivo, completaria 120 anos no próximo dia 31 de outubro e também, há 35 anos, no dia 17 de agosto de 1987, morria, no Rio de Janeiro, o nosso poeta, contista e cronista, deixando uma obra literária com mais de 40 títulos, lançados no decorrer de 50 anos de profunda e total dedicação à poesia.
No dia da sua morte, eu era repórter da rádio Nacional e estava na cidade do México acompanhando a visita oficial do então presidente da República José Sarney. Era noite e acompanhava do meu quarto o noticiário da emissora, por meio da chamada “caixa de sapato”. Assim que ouvi a notícia da morte do poeta corri para o hotel onde estava hospedado o presidente Sarney e pedi a segurança para falar com ele. Sarney ainda não sabia que o Brasil tinha acabado de perder o seu maior poeta. Confiou na minha informação e gravou uma mensagem de despedida do amigo Drumond de Andrade. Voltei para o meu hotel e minutos depois uma multidão de repórteres entrou no meu quarto pedindo a gravação. A assessoria do Sarney havia informado que o presidente da República já havia se manifestado em entrevista concedida ao repórter Irineu Tamanini.
Nascido em Itabira (MG), no dia 31 de outubro de 1902, cursou a faculdade de farmácia, mas escrevia desde cedo e foi fundador de “A Revista”, que divulgava o modernismo no Brasil. Durante a maior parte do tempo, foi funcionário público, mas seguiu escrevendo até o final da sua vida. Além de poesia, produziu livros infantis, contos e crônicas. Drummond, como os modernistas, adotou a libertação do verso. No final da década de 1980, o erotismo ganhou espaço na sua poesia até seu último livro.
Carlos Drumond de Andrade estudou no tradicional Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, e no Colégio Anchieta, dos jesuítas, em Nova Friburgo (RJ) Formado em farmácia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com Emílio Moura e outros companheiros, fundou “A Revista”, para divulgar o modernismo no Brasil.
Em 1925, casou-se com Dolores Dutra de Morais, com quem teve dois filhos, Carlos Flávio, que viveu apenas meia hora e a quem é dedicado o poema “O que viveu meia hora”, presente em Poesia completa e Maria Julieta Drummond de Andrade. Carlos Drummond de Andrade faleceu em 1987 doze dias depois do falecimento de sua filha, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade.
Nos anos 1940, Drummond ingressou nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e chegou a dirigir um jornal do Partido no Rio de Janeiro, onde realizou uma entrevista com o dirigente do partido Luis Carlos Prestes ainda na cadeia. Sua estreia literária aconteceu em 1930 com o livro “Alguma Poesia”. “A obra de Drummond alcança — como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou Murilo Mendes — um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo da História, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas ideológicas, ou prospectivas”.
Entre suas principais obras, destacam-se: “Brejo das Almas” (1934), “Os Ombros Suportam o Mundo” (1935), “Elegia” (1938), “Sentimento do Mundo” (1940), “José” (1942), “A Rosa do Povo” (1945), “Claro Enigma” (1951), “Fazendeiro do Ar” (1954), “Lição de Coisas” (1962), “Boitempo” (1968), “Discurso de Primavera e Algumas Sombras” (1977), “Corpo” (1984), “Amar se Aprende Amando” (1985), “O Avesso das Coisas” (1988). Drummond também traduziu obras de Balzac, Choderlos de Laclos, Marcel Proust, García Lorca, Mauriac e Molière. Vários de seus livros foram traduzidos para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco e tcheco.
Em 1987, meses antes de sua morte, a escola de samba Mangueira o homenageou no Carnaval com o enredo “O Reino das Palavras”, sagrando-se campeã do carnaval carioca naquele ano.
José
Um dos maiores e mais conhecidos poemas de Drummond, “José” exprime a solidão do indivíduo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de estar perdido na vida. Na composição, o sujeito lírico se interroga repetidamente acerca do rumo que deve tomar, procurando um sentido possível. Tempos atrás o cantor pernambucano de Pesqueira, Paulo Diniz musicou o poema José:
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?