Era um sábado de manhã bem cedo quando sai no carro da rádio Nacional para ir até o sitio do Pericumã, onde o presidente José Sarney costumava passar os finais de semana. A estrada era de terra e com várias curvas. De repente, vejo um Fusca com as rodas pare cima em um curva bem fechada e próxima da entrada da casa do Sarney. O motorista da rádio Nacional parou o carro, desci e logo vi escrito na porta JB. O acidente tinha acabado de acontecer mas não tinha ninguém por perto. O carro da Nacional tinha um rádio-comunicador (não havia na época o celular) onde passava as matérias os vários jornais da emissora. Avisei ao pessoal da redação e logo descobri que o repórter do Jornal Brasil era o Sérgio Leo, marido da Martinha Salomon. Pedi ao Leo que contasse em detalhes o acidente para o meu blog. Conta Sergio Leo:
“Escalado para o plantão tradicional na porteira do Sítio S. José do Pericumã, descanso de fins de semana e feriados do então presidente José Sarney, onde nunca estive, saí com o motorista no fusquinha amarelo do JB, levando, nas mãos, laudas de um artigo que estava devendo ao editor e pretendia revisar no caminho. Era famosa a cordialidade da família presidencial, falava-se que D. Marly costumava até mandar um lanche aos repórteres agrupados em torno da entrada do sítio; eu esperava um plantão modorrento, embora o reportariado estivesse atento ao noticiário sobre uma iminente reforma ministerial.
Já na Asa Sul, o motorista fez umas ultrapassagens esquisitas, umas freadas bruscas, me deixou cabreiro. Pedi cuidado. E ele parecia ter me atendido, até chegar, quilômetros depois, em uma curva acentuada na estrada de terra para o sítio, onde eu, distraído na revisão do texto datilografado, me vi, de repente, sacolejando de um lado a outro no banco dianteiro do carro; ainda tentava entender o que acontecia quando o carro bateu numa pedra na margem da estrada e… capotou.
Ficamos de cabeça para baixo; o sujeito, acho, saiu logo. E eu, nem sei como, deixei o fusca pelo buraco que vi no lugar do vidro traseiro do carro, que havia se destacado inteiro e jazia na estrada cheia de poeira. Minha filha tinha nascido havia poucos meses, e eu, ateu confesso, pedi a Deus que me deixasse vê-la de novo.
Olhando aquela cena surreal, do fusca amarelo de rodas para o ar na estrada vermelha de terra, me lembrei de histórias de pessoas com experiência de quase-morte, que se sentiram sair do próprio corpo e olhá-lo de fora. Juro que, na dúvida, meti a cara no buraco traseiro por onde havia saído para conferir se o corpo do Sergio Leo não estava ali, ainda, no banco dianteiro do carro amassado.
Não lembro como fomos parar no hospital, onde levei uns cinco pontos no alto da testa, depois de implorar à enfermeira que não raspasse muito o meu já escasso cabelo no topo da cabeça.
Fui para casa, zonzo, e estava meio dormido, quando Marta Salomon, minha mulher, me disse que estavam telefonando do jornal para mim. Era o chefe do plantão, Ricardo Pedreira. Me disse que o diretor Ricardo Noblat queria falar comigo. Atendi, e do outro lado da linha, ouvi o jornalista que era, ao mesmo tempo, referência e algoz para nós, garotada de vinte anos da sucursal: “Sergio Leo, tudo bem? O Sarney ligou para cá, quer falar contigo, e deve ligar para aí. Me apuuure tudo que puder com ele sobre essa reforma ministerial!”
Nem pestanejei. Só fiquei meio desconfiado quando recebi o tal telefonema, e um sujeito identificando-se como ajudante de ordens de Sarney, me cumprimentou e passou o telefone ao presidente. Uma das características da sucursal era o clima descontraído – apesar da pressão e esporros rotineiros do Noblat – e um histórico de trotes e gozações entre os repórteres e chefia. Me perguntei se não era alguém da redação imitando, como muitos faziam na época, o sotaque e a voz do presidente. Mas achei que, se era um imitador, a qualidade da imitação era tão boa que seria minha obrigação cair no trote.
Ouvi Sarney me cumprimentar, cortês, e, para minha surpresa, me pedir desculpas por ser o motivo de ficarmos ali ao relento, e, com isso, ter me metido na situação que acabou em acidente. Aí, lembrei da pauta do Noblat:
“Obrigado, presidente, estou bem˜, disse, com sinceridade. “Mas, se me permite, o que está me doendo mesmo é não saber o que o senhor pretende fazer nessa reforma ministerial de que o povo está falando˜.
Sarney hesitou muito brevemente, fez alguns comentários, e eu, freneticamente, busquei papel e caneta na minha mesa de cabeceira. Acabada a conversa, liguei imediatamente para o Noblat. Comecei a relatar a entrevista, olhei para minhas anotações e, perplexo, notei que, no papel, só havia garranchos incompreensíveis; puxei pela memória, não lembrava quase nada do que Sarney havia me dito; claro que, muito provavelmente, nada realmente relevante sobre a reforma.
“É, Sergio Leo, o Sarney te enrolou direitinho, né?”, resumiu, irônico, o Noblat. Só então me dei conta da bizarrice da situação. E respondi: “É, Noblat. Da próxima vez, o carro capota contigo e você faz as perguntas pro Sarney”.
Ou acho ter respondido isso. Ainda estava meio zonzo, como te contei.”