Essa linda história é contada pelo meu amigo Deni Menezes, nascido em Manaus (AM), com mais de 50 anos de carreira, hoje aposentado, meu vizinho no Leblon, aqui no Rio de Janeiro, e que foi um dos maiores repórteres de rádio do país. Em 1982, na Copa do Mundo da Espanha, tive a oportunidade de cobrir o mundial ao lado do Deni, José Carlos Araújo, Washington Rodrigues (Apolinho) e o Eraldo Leite. Os quatro formavam a equipa da rádio Nacional. Um baita time de repórteres. Aprendi demais com eles.
Deni conte a história do João Saldanha, jornalista, técnico da Seleção Brasileira em 1970 e botafoguense roxo, apesar de ter nascido no Alegrete (RS).
“João Saldanha foi um dos profissionais mais inteligentes e de raciocínio mais rápido com quem trabalhei, em jornal e em rádio, em meados dos anos 60. Foi na Rádio Guanabara, no edifício Darke, na Avenida Treze de Maio, ao lado do Teatro Municipal, no Centro do Rio, que ele iniciou a carreira de comentarista, depois de comandar o time do Botafogo, último dos grandes a ganhar o Campeonato Carioca no Maracanã, em 1957. O narrador Dollar Tanus, que o convidou, ao anunciá-lo nas transmissões, criou o slogan: João Saldanha, o comentarista realmente técnico.
Cobri minhas duas primeiras Copas do Mundo, tendo a honra de fazer parte da equipe em que figuravam os notáveis narradores Jorge Curi, com quem eu iniciei na Rádio Nacional, em 58, e Waldir Amaral, que me convidou em abril de 65, quando eu já era repórter do jornal, admitido pelo editor Ricardo Serran, depois que fiz para O Globo, em 64, a cobertura da volta ao mundo do Madureira, primeiro time das Américas a jogar na China, ainda sob o comando do líder Mao-Tsé-Tung.
Demitido da seleção, três meses antes da Copa do Mundo, João Saldanha foi muito ético ao analisar os jogos em Guadalajara e a final na Cidade do México, sem revelar, em todas as nossas transmissões, nenhum ressentimento, limitando-se às estritas observações técnicas, que sabia fazer sempre com muita visão do jogo. A demissão dele, depois do 1 x 1 no amistoso com o Bangu, na tarde do sábado, 14 de março de 1970, no estádio do Bangu, onde fiz a cobertura, não foi decorrente só do resultado. Ele não foi o primeiro técnico questionado pelos jogadores, foi apenas mais um.
Saldanha não se doutorou, mas a vida lhe conferiu o diploma da competência. Quando se lhe fazia uma pergunta, ele sempre acrescentava algo, sem se limitar à resposta simples. Os que se lembram do lance em que Pelé, quase do meio do campo, tentou encobrir o goleiro tcheco Ivo Viktor, nos 4 x 1 da estreia da Copa de 70, talvez não saibam que estivesse ligado à declaração de Saldanha de que Pelé era míope. Saldanha sabia cutucar, instigar, provocar, só em troca de que rendesse mais, nada além disso. Era um orientador técnico com muitas outras virtudes, e a invencibilidade, na melhor campanha da seleção nas eliminatórias, foi a melhor demonstração do seu trabalho.
Quando João Havelange, outra figura de inteligência rara, convidou Saldanha para assumir, foi para acalmar os críticos, que continuavam a não perdoá-lo pela campanha desastrosa de uma única vitória (2 x 0 na Bulgária), na estreia da Copa de 66, em que Pelé e Garrincha fizeram os gols e o último jogo juntos pela seleção, sem nunca terem perdido, raridade na estatistica do futebol mundial. Poucos se lembram, mas Rio e São Paulo, então absolutos na liderança do futebol brasileiro, viviam o auge do conflito de vaidades, desde a década de 30, ano da primeira Copa. Havelange acalmou São Paulo, convidando o paulistano e são-paulino Paulo Machado de Carvalho para chefiar a seleção. Depois do bi mundial, em 58 e 62, doutor Paulo, como era tratado, passou a ser o Marechal das Vitórias.
Advogado brilhante, igual ao doutor Paulo, Antonio do Passo foi escolhido por Havelange para dirigir a comissão técnica na Copa de 70, bem afinado com os outros integrantes: os médicos Lídio Toledo e Mauro Pompeu, e o preparador fisico Admildo Chirol, unha e carne de Zagalo, quarteto de parceiros do primeiro bi carioca (67-68) do Botafogo no Maracanã. Figura simples, nascido e criado na Leopoldina, o doutor Passo se dividia entre Olaria e Bonsucesso, que tinham bons times, e foi dos mais capazes na presidência da então Federação Carioca de Futebol. Antonio do Passo sempre defendeu o trabalho de João Saldanha.
João Saldanha teve alguns problemas, por suas ideologias, uma delas a de comunista convicto. Quando estivemos na cobertura do Botafogo, na Libertadores de 73, após o golpe militar do ditador Augusto Pinochet, que matou o presidente socialista Salvador Allende, no Palácio de La Moneda, Saldanha ajudou os brasileiros exilados em Santiago, dando quase todos os dólares que recebeu de diárias. No mesmo ano, quando chegamos em Moscou para um amistoso da seleção, ele saiu do aeroporto com os amigos do Partidão e só voltou a conviver conosco no estádio, no dia do jogo.
João Alves Jobim Saldanha teve muita cultura geral. Era instantâneo, inteligente, criativo, imaginativo, surpreendente. Antes da Copa de 74, a seleção estava na Floresta Negra alemã e fez um dos amistosos na francesa Estrasburgo, a 65 km. Quando entramos no pequeno estádio, perguntei: João, foi nesse estádio que o Brasil ganhou de 6 a 5 da Polônia na Copa de 38? Ele me olhou, apontou o indicador esquerdo para uma das traves, e respondeu na bucha: “O sexto gol foi ali”… Gaúcho do Alegrete, Saldanha tinha 57 anos em 1974 e estava com 21 em 1938, um ano antes de eu ter nascido em Manaus”.