Logo depois que iniciei minha carreira de repórter no Correio Braziliense, em maio de 1976, conheci em uma sala próxima à redação – em frente à sala do Ari Cunha – tudo no prédio antigo do jornal – uma figura que tinha conhecimento apenas pelos jornais e tvs do Rio de Janeiro: o Profeta Gentileza. Ele me disse na época que tinha feito a pé o percurso de Conselheiro Lafaiete (MG), onde residia, até Brasília. E voltaria a pé também. Já idoso, com uma longa barba e roupa branca, Gentileza ficou conhecido quando pintou 56 pilastras do Viaduto do Gasômetro, que leva até a Rodoviária Novo Rio, com mensagens de amor, paz e respeito pela natureza.
José Datrino nasceu no dia 11 de abril de 1917, na cidade de Cafelândia, interior de São Paulo, mas foi no Rio de Janeiro que formou sua família e sua transportadora, atividade essa que levou por toda a vida. Desde pequeno, porém, acreditava ter uma missão especial: levar uma mensagem de respeito ao mundo: Gentileza gera gentileza. Teve uma vida dura ao lado de nove irmãos e desde cedo trabalhou. Puxava carroça, vendia lenha e aprendeu a amansar burros para os transportes de cargas.
Já adulto e na capital carioca, José vivia com a família em Guadalupe, zona norte. Decidiu que era a hora de abandonar as caminhadas pela cidade quando, numa noite, recebeu uma mensagem em sonho. Isso foi alguns dias depois do incêndio que tomou no dia 17 de dezembro de 1961 o Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, e matou cerca de 500 pessoas. José montou no local uma horta e plantou um jardim, como forma de levar conforto para as famílias das vítimas. Desde então passou a compartilhar seus pensamentos e recebeu o apelido de Profeta Gentileza. O Profeta Gentileza também morou na cidade de Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais, onde fazia pregações de frente ao prédio onde está instalado o INSS. Isso ocorreu por volta dos anos 1977 e 1978. Fazia pregações e realmente chamava a atenção dos estudantes que falavam palavrões perto dele.
Gentileza era um homem de fé. Acreditava que caminhando pela cidade poderia fazer muito mais pelas pessoas, levando palavras de carinho. Ficou conhecido por caminhar pelos bairros do Rio de Janeiro com uma túnica branca, flores e uma placa com suas frases pintadas. “A gentileza é como a criança dentro de nós, basta deixar que ela exista”, diz um de seus pensamentos mais famosos. “Gentileza gera gentileza”, tão simples mas transformador, hoje é símbolo da capital carioca e estampa os mais diversos souvenires.
Nos anos 80, Gentileza pintou 56 pilastras do Viaduto do Gasômetro, conhecido como Viaduto do Caju, com cerca de 1,6 km de extensão desde o Cemitério do Caju à Rodoviária Novo Rio. Ele enumerou cada uma delas e pintou com suas frases que promovem maior integração com a natureza, amor ao próximo como irmão, cumplicidade, fé e uma dura crítica ao dinheiro. Ele abdicou de tudo para espalhar esses pensamentos, ainda que mantivesse contato com a família apesar de boatos de que vivia só.
Após a sua morte, em 1996, as pilastras chegaram a ser pintadas pela então prefeitura, removendo dali toda a sua memória. A revolta foi tamanha que em 1999 se iniciou um processo de restauro das obras. No início de 2000, os murais foram tombados como patrimônio da cidade.Esse episódio é cantado por Marisa Monte, na música de nome ‘Gentileza”, em homenagem ao Profeta.
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro ficou coberta de tinta
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro tristeza e tinta fresca
Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras e as palavras de gentileza
Por isso eu pergunto a você no mundo
Se é mais inteligente o livro ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é um circo
“Amor” palavra que liberta
Já dizia o profeta
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro tristeza e tinta fresca
Por isso eu pergunto a você no mundo
Se é mais inteligente o livro ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é um circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o profeta
Outra música em sua homenagem também leva o nome de “Gentileza”, dessa vez na voz de Gonzaguinha. Ele canta: “Feito louco pelas ruas com sua fé… Gentileza O profeta e as palavras, calmamente semeando o amor à vida, aos humanos, bichos, plantas, terra… Terra nossa mãe.”
Hoje, poucos podem se lembrar desse homem que foi tão importante para a memória das ruas do Rio de Janeiro, mas quem passa sob o viaduto que leva à rodoviária ainda lê e reflete sobre suas palavras. Nesse Dia Mundial da Gentileza, não há outra história que poderíamos compartilhar que não a de alguém que deixou tudo para trás apenas para fazer o outro enxergar como o mundo pode ser um lugar melhor.
O Profeta Gentileza morreu no dia 29 de maio de 1996, aos 79 anos, na cidade de Mirandópolis, no estado de São Paulo.
Gentileza gera gentileza. Sempre.